quinta-feira, janeiro 14, 2016

A confusão de João César das Neves.

Na sua coluna "Não Há Almoços Grátis" [1], João César das Neves decidiu hoje escrever sobre "As vítimas  de 'Charlie'". Começou por denegrir a publicação francesa, dizendo tratar-se de um "semanário humorístico extremista e radical, adepto de piadas insultuosas e de mau gosto", e que abusa da "liberdade de expressão para atacar os sectores mais variados da sociedade". Dizer que o Charlie Hebdo é extremista e radical não tem por si só qualquer significado. Quais são os extremos dessa barra com que João César das Neves mediu o jornal? Não sabemos ao certo. E quais são esses sectores da sociedade que são 'atacados' pelo Charlie Hebdo? Segundo João César das Neves são "todos os que não seguem a sua [do Charlie Hebdo] orientação anarquista, ateia e socialmente libertária." Vamos assumir que sim, que o Charlie Hebdo é uma publicação de orientação anarquista, ateia e socialmente libertária. Parece-me que se pode dizer, com uma aproximação razoável, que o jornal 'ataca' quase todos os sectores da sociedade [2]. Mas o que quer João César das Neves dizer quando utiliza o verbo 'atacar'? Ficou também por dizer. Com certeza não fez explodir nenhuma bomba, nem atentou contra a vida de ninguém.

Depois desta negra introdução, João César das Neves presenteia-nos com um parágrafo alucinante, no qual nos passa a seguinte mensagem: do ponto de vista do semanário francês, os ataques terroristas de 7 de Janeiro de 2015 foram a melhor coisa que podia acontecer! Porquê? Porque o fez atingir a fama mundial. Ainda bem que as equipas de marketing dos outros jornais não são da mesma opinião...

As principais vítimas do atentado, segundo João César das Neves, foram os caricaturistas e outros  trabalhadores do jornal. Mas não estão sozinhas no top: a outra vítima principal foi o próprio semanário! Como? Então não foi a melhor coisa que lhe podia ter acontecido? Ah, mas isso depende do ponto de vista: do ponto de vista do semanário o atentado foi muito bom, mas do ponto de vista de João César das Neves (e, segundo o que ele desejaria, do Mundo) o ataque foi mau porque agora os  caricaturistas do jornal satírico "sentem-se justificados para praticar o seu tipo de violência com total impunidade." E que tipo de violência é essa? O mais próximo que João César das Neves nos deixa de uma resposta é quando nos diz que a linha editorial do Charlie Hebdo "sempre foi claramente agressiva, injuriosa, roçando os limites do tolerável numa sociedade livre e democrática." Querem um exemplo? João César das Neves dá-nos uma lista de exactamente zero! Porquê? Não sabemos. Algo evidente é que as caricaturas usadas pelo jornal não são para o gosto de todos. Talvez para o João César das Neves elas sejam agressivas (signifique isso o que significar!) e para mim não. Talvez rocem 'os limites do tolerável numa sociedade livre e democrática'. Desde que não os ultrapassem, estão no seu direito. E se alguma caricatura for injuriosa (e logo, criminosa), a pessoa ou grupo de pessoas que sofreu a injúria tem o sistema jurídico para se defender. Mas o mais provável é que o que vemos aqui seja mais um caso de alguém que olha para as caricaturas já com o preconceito de que são racistas e xenófobas, e não se dá ao trabalho de as tentar entender. Para saber ao certo se é este o caso ou não seria preciso que João César das Neves nos mostrasse alguns exemplos dessas caricaturas de que tanto fala, mas não temos essa sorte!

As segundas vítimas, e desta vez sinto-me em total sintonia com João César das Neves, foram os muçulmanos. Não os 'fanáticos extremistas', mas sim a grande maioria dos muçulmanos que apenas querem viver a sua vida tranquila, e que são cada vez mais alvo de xenofobia.
E depois começámos a dessintonizar... João César das Neves criou um paralelo estranho dizendo que os terroristas 'Saïd e Chérif Kouachi são tão mártires para os seus correligionários como Charb ou Wolinski para os cartoonistas.' Eu não posso falar pelos 'cartoonistas', mas, para mim, nem Charb, nem Cabu, nem Wolinski, nem nenhum dos 12 mortos no atentado terrorista foram mártires. Morreram não a defender uma ideologia, mas a executar o seu trabalho. E se esse trabalho estava de alguma forma ligada a uma ideologia, era uma ideologia anti-racista, como o atestam, por exemplo, o presidente da associação SOS racisme [3], ou o filósofo Russell Blackford [4].

As terceiras vítimas, e voltando a concordar com João César das Neves, foram 'as pessoas moderadas e decentes', que desceram 'mais um passo na espiral da violência.' É um chavão, e é verdade: violência gera violência. (João César das Neves refere-se também, e mais uma vez, à 'violência das caricaturas do Charlie Hebdo, e mais uma vez, eu não sei o que ele quer dizer com isso.)

Depois de nos falar das vítimas, João César das Neves quer-nos elucidar sobre o horror que é o semanário Charlie Hebdo, dizendo que "[n]o Ocidente tornou-se chique louvar, premiar e admirar o Charlie Hebdo, sem dar atenção ao conteúdo das suas páginas." Não! No Ocidente tornou-se chique criticar e denegrir o Charlie Hebdo, sem dar atenção ao conteúdo das suas páginas [5]. Parece-me que concordamos em discordar.


[1] - Diário de Notícias, 14 de Janeiro de 2016.
[2] - França tem uma população de ateus de aproximadamente 4%, por exemplo. Parece-me seguro dizer que o jornal consegue 'atacar' uma esmagadora maioria da população.

Sem comentários: